A greve na USP

Imagem: Artem Malushenko
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Por FREDERICO DE ALMEIDA*

Desta greve podem surgir fraturas mais fundas numa “comunidade universitária” esgarçada pela precarização, pelo produtivismo e pela desigualdade

Não raro as greves nas universidades deixam fraturas que duram algum tempo e muitas vezes reorganizam as relações. Estudantes, servidores administrativos e docentes têm relações e expectativas diferentes com a universidade, a vivem em tempos distintos e têm também disposições e recursos diferentes para a ação política.

Numa greve, ainda mais em conjunturas críticas, essas diferenças se encontram com maior intensidade, no mesmo tempo histórico e com mecanismos de representação e decisão que se comunicam, mas não são partilhados (salvo na situação de uma assembleia geral).

Há uma piada entre nós docentes que diz que nossos estudantes têm sempre a mesma idade, nós que envelhecemos. A verdade aí é que enfrentamos a mudança do mundo principalmente pela sucessão de jovens que passam pela Universidade.

Esse (des)encontro é sempre difícil, pedagogicamente (na sala de aula) e politicamente (na greve). E acho que ficou mais difícil nos últimos anos, por várias razões: o processo de inclusão no ensino superior dos últimos anos, as cotas étnico-raciais, as novas demandas e expectativas colocadas à universidade por esse novo corpo discente, as visões de mundo, da universidade e do processo de ensino e aprendizagem que distanciam cada vez mais rápido as gerações.

Além disso, no mesmo período houve crise política, golpe, Jair Bolsonaro, pandemia, crise econômica e humanitária, ameaças de golpe, violência política, reforma do ensino médio, reforma trabalhista. E uma enorme quebra de expectativas de jovens de diferentes idades que chegaram à universidade em algum momento da ascensão ou da queda dos governos do PT, ou dos processos regressivos que vieram com os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

As razões da greve na USP (e que pode se tornar uma greve das universidades estaduais paulistas) não estão apenas nas ameaças representadas pelo governo de Tarcísio de Freitas, pela perda de financiamento, pela ausência de docentes e o fechamento de departamentos e cursos. Estão nesse processo que começa com democratização, inclusão e ascensão, e desemboca em fascismo, neoliberalismo e recessão.

Os conflitos latentes estão aparecendo agora, inclusive (mas não somente) na greve. A universidade que vinha mudando ficou presa ali, no meio do caminho entre a transformação e a conservação, a inclusão e a exclusão, a expansão e a retração, a inovação e a autopreservação.

Esta greve estava esperando para acontecer há alguns anos, estancada pelo que vivemos nos últimos anos, e liberada pela derrota de Jair Bolsonaro e as expectativas com a vitória de Lula. Não sei o que virá dela, mas receio que surjam fraturas ainda mais fundas numa “comunidade universitária” esgarçada pela precarização, pelo produtivismo e pela desigualdade.

Porém, isso não é razão para que ela não aconteça. A greve é necessária e legítima. Dito isso, penso que a discussão sobre os meios de ação não pode ser feita nas redes sociais nem em abstrato, assim como não considero produtivos apelos por uma suposta “civilidade” ou acusações genéricas de “vandalismo”.

É certo que os conflitos que a greve na universidade expõe não se resolvem com violência, mas também não se resolverão com condenações genéricas à violência, como se uma maçaneta quebrada fosse a mesma coisa que uma lesão corporal, como se um rabisco na parede fosse um atentado terrorista. Essa é uma estratégia histórica de criminalização do protesto social à qual setores progressistas aderiram a partir de 2013, quando foi largamente utilizada pela segurança pública e pela imprensa para criminalizar manifestantes, movimentos sociais e partidos políticos de esquerda.

Não cabe a nós docentes lançar mão de estratégias de criminalização contra aqueles que lutam pela universidade pública, ainda que discordemos de suas reivindicações e métodos. As relações de poder no mundo fora da universidade já são repletas de estratégias de criminalização, aparatos securitários e violência estatal sem controle. O papel da universidade é resistir a esses processos, não alimentá-los, para que possa se afirmar como espaço efetivo de diálogo e democracia.

Nós docentes precisamos admitir que talvez vivamos em um mundo e em uma universidade diferentes daqueles experienciados pelos nossos alunos. E admitir que a universidade que virá não será a simples retomada da universidade que existia em 2016, nem o que naquele ano projetávamos como seu futuro.

Admitir isso me parece o primeiro passo para que um diálogo possa surgir entre os diferentes grupos que formam a comunidade universitária e mesmo entre aqueles que, aparentemente, defendem as mesmas bandeiras. E esse diálogo precisa ser feito evitando dois extremos nos quais nós docentes corremos o risco de cair ao lidar com o movimento estudantil: igualá-los a nós em valores, visões de mundo e experiências com a universidade, apelando para nosso senso comunitário; ou reduzi-los de maneira complacente, como estudantes que precisam aprender a fazer política e compreender a (nossa) universidade, apelando para nossa função como educadores.

Nem uma coisa, nem outra: agir com franqueza e abertura, reconhecendo as enormes diferenças que separam professores e estudantes, dentro de um conjunto de expectativas e ações que possamos partilhar quando falamos em “defesa da universidade pública, gratuita e socialmente referenciada”.

Claro, que isso é uma via de mão dupla: o movimento estudantil não pode confundir a burocracia universitária com o corpo docente que a ocupa eventualmente, e deve saber construir alianças com os setores docente e administrativo sempre que possível. Mas devemos ter em mente que processos políticos como o de uma greve têm tempo e dinâmicas distintos daqueles processos burocráticos por meio dos quais nós docentes administramos e pretendemos mudar a universidade a partir de sua institucionalidade.

Justamente porque nós docentes estamos e continuaremos mais tempo na universidade é que que cabe a nós um esforço de compreender o novo que os conflitos do presente trazem, para podermos pensar juntos o futuro da universidade.

*Frederico de Almeida é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


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